Skip to content

Tráfico de Seres Humanos e Exploração

O que é?

De acordo com a Directiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, o tráfico de pessoas é definido como o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, com recurso a meios como a ameaça ou uso da força, outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma situação de vulnerabilidade, ou ainda mediante a oferta ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha controlo sobre outra, tendo como finalidade a exploração.

Para compreender este crime, será necessário compreender a sua dinâmica e os conceitos que o definem, nomeadamente os três fundamentais: uma acção que através de determinados meios coloca, ou tem intenção de colocar, uma pessoa numa situação de exploração:

Ação

  • Recrutamento;
  • Transporte;
  • Transferência;
  • Alojamento;
  • Acolhimento;
  • Transferência de controlo.

Meio

  • Ameaça;
  • Uso de força;
  • Coação;
  • Fraude;
  • Engano;
  • Rapto;
  • Abuso de poder;
  • Abuso de vulnerabilidade.

Finalidade

  • Exploração sexual;
  • Exploração laboral e trabalhos forçados;
  • Mendicidade;
  • Criminalidade forçada;
  • Casamento forçado;
  • Adoção ilegal;
  • Escravidão;
  • Extração de orgãos.

Outros conceitos são fundamentais:

  • Consentimento: o consentimento dado por uma vítima de Tráfico de Pessoas é irrelevante sempre que é utilizado um dos meios acima referidos. Entende-se, que, ainda que a pessoa possa ter aceitado em algum momento as condições em que se encontra, esse consentimento foi condicionado pela utilização de meios violentos ou fraudulentos e por isso não é considerável.

 

A exploração e o tráfico de seres humanos estão intimamente ligados, mas não são a mesma coisa. A exploração é a finalidade do crime de tráfico de pessoas, mas pode ocorrer isoladamente e de forma mais simples.

A melhor forma de compreender será a seguinte: Não existe crime de tráfico de pessoas sem exploração, mas várias formas de exploração podem ocorrer e não constituir crime de tráfico de pessoas.

Exemplo:

Exploração

Uma pessoa é recrutada para trabalhar numa exploração agricola. Trabalha na apanha da azeitona, 18h por dia, sem contrato, sem folgas e ganha menos que o ordenado mínimo. Despede-se ao fim de três meses e vai-se embora. O empregador não lhe paga os últimos dois ordenados.

Tráfico de Pessoas

Uma pessoa é recrutada para trabalhar numa exploração agrícola. O seu empregador prometeu que lhe pagaria a viagem, que a ajudaria a obter documentação e alojamento. Para além disso, receberia um bom salário. Trabalha na apanha da azeitona, 18h por dia, sem contrato, sem folgas e ganha o ordenado mínimo. Deste ordenado, tem que pagar ao empregador a dívida da sua viagem, o alojamento que este providencia e custos associados à regularização documental. Vive com outras pessoas, num armazém sem condições. Quando se quer despedir é ameaçada de que se o fizer será reportada às autoridades de imigração e deportada. Nunca chega a obter autorização de residência.

O que diz a lei em Portugal?

Em Portugal o Tráfico de Pessoas é crime público, previsto no art. 160º do Código penal, que diz:

“Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:

a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;

b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;

c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;

d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou

e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

A legislação define ainda que no caso de a vítima ser menor, será tráfico de pessoas, mesmo que não estejam presentes os meios e que caso estejam, a pena será agravada. Assim, diz ainda o art. 160º:

“2 – A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas.

3 – No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.”

Em Portugal, as situações de exploração são ilegais, mesmo que não se enquadrem formalmente como tráfico de pessoas. Podem ser punidas com base na legislação penal ou laboral e nos direitos civis ou normas administrativas.

Assim, a exploração será crime ou estar associada a práticas criminosas quando acontecer:

  • Lenocínio;
  • Escravidão;
  • Auxílio à imigração ilegal;
  • Violência física ou verbal contra o/a trabalhador/a;
  • Coação.

Por outro lado, a exploração poderá ser considerada uma contraordenação ou uma infracção administrativa, previstas no Código do Trabalho, quando acontece, por exemplo:

  • Não pagamento de salário;
  • Trabalho sem contrato;
  • Excesso de horas sem pagamento;
  • Tratamento indigno;
  • Falta de segurança no local de trabalho.

Como acontece?

O tráfico de pessoas podem ocorrer de formas muito diferentes, que variam de acordo com o tipo de exploração e as características das vítimas. Ainda assim, algumas etapas são comuns:

Num primeiro momento, as vítimas são atraídas e aliciadas, com recurso a diferentes meios que se aproveitam das suas vulnerabilidades e que recorrem frequentemente ao engano e fraude: ofertas de trabalho bem remunerado; promessas de relacionamentos amorosos ou expectativas de acesso a melhores condições de vida. Frequentemente a primeira abordagem é feita por pessoas que conhecidas da vítima, que por terem a sua confiança funcionam como intermediárias.

Os métodos de recrutamento estão em constante evolução, sendo cada vez mais comum que os primeiros contactos com a vítima ocorram através da internet, através de anúncios ou contactos em redes sociais.

A deslocação da vítima até ao local onde acaba por ser explorada é a etapa seguinte e envolve frequentemente a sua deslocação para outro país, podendo também ocorrer dentro das fronteiras do mesmo país. Os meios utilizados variam também de acordo com as características da vítima e a forma de exploração, sendo frequente:

  • Pagamento da viagem por parte do(s) recutador(es);
  • Fornecimento ou falsificação de documentos;
  • Instruções sobre como a vítima deve proceder quando se desloca sozinha;
  • Transporte em condições precárias, às vezes com perigo (em veículos sobrelotados, percursos longos, redes de transporte clandestinas).

 

É frequente que a deslocação da vítima envolva a passagem por vários locais (países ou locais de trânsito), onde permanece durante períodos mais ou menos longos e onde pode também ser explorada ou sujeita a diferentes formas de violência.

A exploração é o objetivo do crime de tráfico de seres humanos. É neste momento que a vítima, tendo sua liberdade e autonomia condicionadas, é forçada ou manipulada a realizar atividades contra a sua vontade, em benefício económico (e outros) de quem a explora.

A legislação internacional define exploração como qualquer situação em que uma pessoa é usada como meio para gerar lucro, serviços ou benefícios, sem respeito pela sua dignidade, vontade ou direitos.

 

Exploração Laboral / Trabalho Forçado

É uma das formas mais comuns de exploração (em Portugal é a mais identificada) e consiste na imposição de trabalho em condições abusivas sem respeito por direitos fundamentais: ausência de períodos de descanso; ameaças; ausência de remuneração ou remuneração muito baixa e condicionada pelo pagamento de dívidas ou alojamento (frequentemente sem condições).

Os contextos em que mais ocorre são:

  • Agricultura;
  • Construção civil;
  • Trabalho doméstico e limpezas;
  • Restaurantes e hotelaria;
  • Trabalho em fábricas;
  • Actividades de extração de matérias-primas (minerais, petróleo);
  • Pesca.
Exploração sexual

É a forma de exploração mais reportada globalmente, afectando sobretudo mulheres e meninas. Consiste na imposição de atos sexuais que geram lucro para terceiros.

  • Prostituição forçada;
  • Pornografia forçada (frequentemente em plataformas online de vídeos e chat em directo);
  • Exploração sexual de menores em vários contextos, incluindo para produção de vídeos;
  • Actos sexuais forçados em estabelecimentos de “massagens” ou serviços de “acompanhantes”.
Exploração de actividades criminosas forçadas

Envolve controlo e coação de pessoas para que cometam crimes que geram benefícios para as pessoas que exploram:

  • Furto e roubo;
  • Tráfico de drogas;
  • Fraudes electrónicas;
  • Envolvimento nas etapas de angariação, transporte e/ou controlo de outras vítimas.
Exploração da medicidade

Forçar uma pessoa ou grupo de pessoas a pedir esmola e a entregar os valores ganhos aos exploradores.

Exploração de casamentos forçados

Consiste na obtenção de controlo sobre uma pessoa, frequentemente através de rapto, para a forçar a casar, geralmente em troca de benefícios e/ou de quantias monetárias entregues à pessoa exploradora.

Exploração de adoção ilegal

Consiste na entrega de uma criança, frequentemente bebé, em troca de uma quantia monetária, a uma pessoa ou família, para que a adopte. Envolve frequentemente o rapto ou engano da família de origem; a falsificação de documentos e a corrupção de funcionários.

Exploração no contexto do desporto

Enquadrada geralmente na exploração laboral, mas apresentando características muito específicas, tem vindo a tornar-se cada vez mais frequente, sendo dificil de detectar, por se confundir com actividades legítimas no âmbito do desporto.

Nestes contextos de exploração, jovens atletas, treinadores e outros profissionais são aliciados com promessas de carreira, patrocínios ou transferência para clubes estrangeiros, caindo em situações de abuso, fraude ou coação.

Exploração para extração de orgãos

Envolve a obtenção de órgãos (rins, fígado, córneas, etc.) de pessoas, com falta de consentimento válido, com o objetivo de comercialização e lucro. Ao contrário da crença comum, raramente acontece através do rapto de uma vítima selecionada ao acaso, mas antes recorrendo ao engano, coação, abuso de vulnerabilidade ou falsificação, convencendo a vítima a ser sujeita à extracção de um orgão, sem que tenha consciência das reais consequências para a sua saúde e vida, em troca de quantias monetárias irrisórias e que frequentemente nem chega a receber.

Exploração em conflitos armados

Guerras, conflitos armados e crises humanitárias criam ambientes de vulnerabilidade extrema, nos quais redes de tráfico e criminalidade organizada facilmente operam. Nestes contextos, o tráfico de seres humanos é tanto uma consequência quanto uma estratégia de controlo, lucro e desumanização. Nestes contextos, o recrutamento forçado de soldados, a exploração sexual e mesmo a exploração laboral são quase inevitáveis.

A exploração e o trafico de seres humanos são fenómenos com causas profundas e complexas, que encontram sempre mais espaço em circunstâncias de fragilidade e instabilidade. Por outro lado, a ausência de estratégias e mecanismos de prevenção e de

combate destes fenómenos contribuem para a sua prevalência e em alguns contextos, normalização. São assim vários os factores que contribuem para a existência aumento destas formas de violência:

  • Pobreza e desigualdades económicas e de oportunidades, incluindo a dificuldade de acesso ao trabalho remunerado de forma justa e proporcional ao custo de vida, a desvalorização do trabalho “menos qualificado” e as desigualdades extremas entre países e regiões;
  • Conflitos e instabilidade política;
  • Crises humanitárias e migrações forçadas, causadas por vários factores, incluindo guerras e fenómenos climáticos extremos;
  • Violência de género, discriminação e crimes de ódio;
  • Falta de mecanismos de fiscalização, regulação e cooperação institucional;
  • Desrespeito e anulação de direitos laborais;
  • Falta de informação e de conhecimento sobre formas de exploração e de recrutamento emergentes, nomeadamente através da internet.

Quem são as vítimas?

Qualquer pessoa pode ser vítima de exploração ou tráfico de seres humanos. Estas formas de violência afectam milhões de pessoas, num fenómeno entendido como “escravatura dos tempos modernos”. Embora qualquer pessoa possa, caso se encontre em determinadas circunstâncias, tornar-se vítima de tráfico ou de exploração, algumas pessoas ou grupos de pessoas apresentam uma maior vulnerabilidade, estando por isso em maior risco. Assim, a maioria das vítimas de tráfico são:

Cerca de 70% das vítimas de tráfico de pessoas ou de graves formas de exploração são mulheres (e meninas), sujeitas sobretudo a exploração sexual, mas também laboral. A desigualdade de género nas suas várias expressões (desigualdade de direitos e oportunidades, normas culturais e sociais) está na base da sua vulnerabilidade, associada frequentemente a outras formas de violência que afectam sobretudo as mulheres, como a violência doméstica.

Uma grande percentagem das vítimas são menores de 18 anos, sendo as meninas as mais vulneráveis e mais frequentemente identificadas. Sujeitas a todas as formas de exploração, tornam-se naturalmente mais vulneráveis em contextos de fragilidade social

Geralmente em circunstâncias de maior fragilidade e instabilidade económica, estão em maior risco de recrutamento para várias formas de exploração, sobretudo por falta de oportunidades de acesso a trabalho regulado, associada ao desconhecimento de direitos e ao isolamento social. Pessoas em situação irregular estão não só em maior risco, como em circunstâncias que as impedem de denunciar e obter apoio, temendo consequências do contacto com as autoridades e outros serviços, o que é utilizado pelas pessoas exploradoras como forma de controlo e ameaça

  • Pobreza e situação de sem-abrigo;
  • Desemprego;
  • Dependência de substâncias;
  • Dependência relacional;
  • Vítimas de violência doméstica ou de género;
  • Vítimas de discriminaçãoa;
  • Deficiência ou doença mental.

 

Será importante notar que as pessoas migrantes concentram frequentemente várias destas condições de vulnerabilidade, razão pela qual é importante compreender que leis de imigração restritivas podem activamente contribuir para o aumento das situações de exploração e tráfico de pessoas de várias formas:

  • Criação de canais migratórios ilegais (a migração é um fenómeno característico e inevitável da humanidade e quando a imigração legal se torna impossível, abrem-se inevitávelmente vias ilegais exploradas por traficantes);
  • Maior vulnerabilidade de pessoas migrantes a fraudes e menor capacidade de acesso a direitos fundamentais;
  • Aumento das situações de discriminação e crimes de ódio.